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Um bairro, duas curvas: Copacabana entre o morro e o asfalto

Foto: Andre Coelho / Getty Images
Foto: Andre Coelho / Getty Images
Orla de Copacabana durante a pandemia do Covid-19

Copacabana não é só um bairro. É um microcosmo da desigualdade no epicentro do Rio de Janeiro. Da mesma janela onde se vê um dos hotéis mais luxuosos do país, ouvem-se rajadas da guerra do tráfico nas favelas que cercam o bairro. Entre mar e morro, Copacabana tem a maior densidade demográfica da cidade - 35.858 habitantes por quilômetro quadrado, segundo o IBGE (2020). A distribuição desigual de riqueza e pessoas é materializada pela presença de quatro comunidades: Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, na divisa com Ipanema, Ladeira dos Tabajaras e Morro dos Cabritos. Em tempos de coronavírus, a discrepância das realidades entre asfalto e morro se refletem em distintos padrões de isolamento, transmissão e mortalidade entre as populações nessas áreas - constituindo um caso particular de como as desigualdades brasileiras são amplificadas na crise sanitária.

1. Histórico, densidade e condições de vida:

Situado em um morro entre Ipanema e Copacabana, as comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho acolhem 20.000 moradores do Rio, com 15.000 na primeira e 5.000 na segunda segundo os dados do IBGE de 2010. A história dessas comunidades remonta à chegada de ex-escravos de Minas Gerais que se estabeleceram no Cantagalo e do Nordeste brasileiro no Pavão-Pavãozinho em 1907, em paralelo com o início da urbanização das regiões de asfalto em Copacabana. Vale ressaltar que ao longo da história carioca os habitantes de comunidades tiveram suas demandas sumariamente ignoradas pelas autoridades políticas - construindo uma cenário institucional de marginalização e vulnerabilidade no centro de um dos bairros mais valorizados da capital fluminense.

Em relação à distribuição desigual de riqueza e condições de vida no bairro a tabela abaixo resume as diferenciação nas condições de vida no bairro de Copacabana. Em particular, a área mais rica ao redor da estação de metrô Cardeal Arcoverde, apresenta maior IDH, menor densidade e maior cobertura de água encanada quando comparada à comunidade do Pavão-Pavãozinho - reforçando que nessas áreas a transmissão do vírus pode potencialmente ser maior. Com maior densidade populacional associada a elevados níveis de vulnerabilidade socioeconômica e menor cobertura de saneamento básico, a população desta comunidade se vê menos protegida contra a crise sanitária da Covid-19. Somado o fato de que boa parte dos seus habitantes dependem de um emprego informal para a subsistência e, por isso o trabalho remoto não é uma opção para essas pessoas, a situação de vulnerabilidade se agrava.

Foto: Uol Notícias
Foto: Uol Notícias
Coronavírus em Copacabana

2. Covid-19 e morbidade: Duas curvas inseparáveis

Na semana do dia 11 de Maio, o bairro de Copacabana tomou o topo do ranking dos casos de coronavírus na capital fluminense. Eram 416 infectados e 73 vítimas da Covid-19 no bairro segundo o boletim da Secretaria Municipal de Saúde divulgado no dia 11 (VEJA, 2020). Em relação à evolução temporal dos casos, durante o mês de abril as áreas nobres como Copacabana na Zona Sul e a Barra da Tijuca na Zona Oeste concentravam 70% dos casos no Rio de Janeiro - pois a transmissão interna começou pelas classes mais abastadas.

A partir de meados de abril e principalmente no mês de Maio, no entanto, especialistas passaram a alertar para o avanço da pandemia nas favelas cariocas (UOL, 2020) - sinalizando a existência de duas curvas de contaminação da doença. Isso, pois a transmissão de vírus pode ser facilitada nessas densas populações, caracterizadas por contato inter-individual frequente, moradias lotadas, sistemas inadequados de saneamento, educação deficiente e estado nutricional deficiente. O cenário caótico se materializou com filas de pacientes infectados sem leitos em áreas vulneráveis e densas. A primeira morte no Estado foi de uma empregada doméstica de 63 anos, que morreu no dia 17 de Março ao ser infectada no contato com sua patroa - residente da Zona Sul - que acabara de voltar da Itália e já apresentava sintomas.

3. Isolamento social: Duas quarentenas entre asfalto e morro

Além da maior transmissão nas regiões mais vulneráveis, um problema central para o controle do contágio é a inviabilidade do lockdown nessas áreas sem que haja uma política de sustentação de renda permanente que diminua a vulnerabilidade da população. Em paralelo, uma parcela considerável dos domicílios ainda luta pelo direito ao acesso à água encanada (KONDZILLA, 2020). Se nas áreas centrais do asfalto medidas de lockdown parcial são esperadas nas próximas semanas, o primeiro bairro da Zona Sul a ter restrições à mobilidade, a situação das comunidades é mais complicada. No Pavão-Pavãozinho muitos comerciantes fecharam portas, mas o movimento continuou elevado até a proibição do comércio em comunidades pela prefeitura - situação não registrada em nenhum dos locais com restrições parciais à mobilidade.

O problema com o isolamento social nas comunidades cariocas é que boa parte dos seus moradores depende de trabalhos informais impossíveis em trabalho remoto, então a quarentena dificulta a sobrevivência econômica dessas pessoas. De fato, muitos moradores trabalham informalmente em estabelecimentos do asfalto e o lockdown tem como consequência o aumento da vulnerabilidade (FOLHA, 2020). Assim, a epidemia não estará controlada enquanto não houver um esforço de solidariedade com aqueles que em situação de maior vulnerabilidade.

Foto: Uol Notícias
Foto: Uol Notícias
Coronavírus no morro

4. Políticas públicas para preservar vidas:

Dadas as condições socioeconômicas e sanitárias particulares associadas à transmissão do Covid-19 nas favelas brasileiras, o uso dos modelos preditivos desenvolvidos para essas realidades é de suma importância para o desenvolvimento de políticas públicas que possibilitem salvar vidas e proteger os mais vulneráveis. Nessa linha, o nosso simulador de dispersão do coronavírus (MD Corona) proposto por Guedes Pinto; Magalhães; Santos (2020) simula políticas de isolamento de forma a entender a disseminação do COVID-19, considerando as características socioeconômicas e a densidade populacional do bairro de Copacabana e a dinâmica desigual entre o morro do Pavão-Pavãozinho e o asfalto. As curvas abaixo resumem os resultados e os cenários adotados:

Cenário 1 - Simulação sem intervenção no asfalto e no morro

Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 1 - Copacabana
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 1 - Pavão

Cenário 2 - Simulação com isolamento de 80% da população

Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 2 - Copacabana
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 2 - Pavão

Cenário 3 - Isolamento total (Lockdown - 92% da população)

Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 3 - Copacabana
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 3 - Pavão

Os resultados deste estudo corroboram a forte vulnerabilidade das comunidades diante da crise sanitária, ressaltando a importância de medidas de isolamento social adaptadas à realidade dessas comunidades para poupar vidas. Isso, pois o cenário de isolamento total (92% de confinamento) teria como consequência um menor número de contaminados. No asfalto esse número é 3% de infectados em 7 meses o que sobe para 16% no caso da comunidade. Embora significativamente maior que no asfalto é suficiente para não haver sobrecarga do sistema de saúde. Por outro lado, no cenário 2, com confinamento de 80%, vemos que a discrepância entre asfalto e comunidade é gritante.

Enquanto no primeiro o número de infectados seria 25% em 7 meses, o que não sobrecarrega o sistema de saúde, na comunidade seriam 68% infectados com 1,25% de mortos. Sem nenhuma intervenção de isolamento social ambos atingem um elevado contingente de mortos que é mais duro para a comunidade. Assim, aponta-se para a importância da coordenação entre os diversos níveis de autoridade pública e movimentos sociais e lideranças comunitárias no enfrentamento da crise. É necessário pensar em políticas de isolamento social adaptadas à realidade de cada área com manutenção da renda de forma a salvar vidas em um esforço coletivo de solidariedade. Nesse sentido, mesmo que o vírus não tenha um efeito democrático sobre a sociedade, afetando mais severamente os mais vulneráveis, as curvas entre morro e asfalto são fenômenos inseparáveis.

Referências:

  • BRASIL 247, B. "Isolamento social é coisa de novela", diz moradora de favela no Rio. Maio.
  • IBGE. Atlas do desenvolvimento humano no Brasil. Disponível em: http://atlasbrasil.org.br/2013/. Acesso em: 13 maio. 2020.
  • KLOH, V.; SILVA, G.; FERRO, M. The virus and socioeconomic inequality: An agent-based model to simulate the impact of interventions to reduce the spread of COVID-19 in Rio de Janeiro, Brazil. Brazilian Journal of Health Review, v. 2, p. 2205, 2020.
  • KONDZILLA. "Ainda lutamos pelo direito à água", #COVID19NasFavelas do Rio, saiba como ajudar! 2020, mar.
  • SEBRAE/RJ, O. Painel Regional: Rio de Janeiro e Bairros. p. 16, 2015.
  • SP, F. DE. Ambulantes de Copacabana são atingidos pe. 18 mar. 2020.
  • UOL. No TitleÁreas nobres do Rio concentram 70% dos casos; covid-19 avança para favelas. 2020, mar.
  • UOL. Líder de casos de covid-19, Copacabana terá "lockdown parcial" neste mês. maio.
  • UOL. Prefeitura do Rio determina fechamento do comércio em favelas para conter coronavírus. 2020, maio.
  • VEJA RIO. Covid-19: Copacabana segue como líder em casos e mortes. 2020, maio.
  • Guedes Pinto, José Paulo; Magalhães, Patrícia; Santos Carlos Silva. (2020). Modelo de Dispersão Comunitária Coronavírus (MD Corona), Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, Brasil.