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Um bairro, duas curvas: Fortaleza entre Barra do Ceará e Meireles

Foto: Jarbas Oliveira para CNN Brasil
Foto: Jarbas Oliveira para CNN Brasil
Toque de recolher no centro de Fortaleza durante alta de transmissão na pandemia

A crise sanitária imposta pelo novo coronavírus não é democrática. Mesmo que o vírus possa contaminar a todos da sociedade, os mais socioeconomicamente vulneráveis se encontram menos protegidos contra a transmissão, a morbidade e as consequências do isolamento. Assim, a análise da expansão do Covid-19 em diferentes territórios é um importante elemento na compreensão das diferentes dimensões dessa crise.

Em tempos de coronavírus, a discrepância das realidades entre Barra e Meireles se refletem em distintos padrões de isolamento, transmissão e mortalidade entre as populações nessas áreas - constituindo um caso de como as já extremas desigualdades da capital cearense são ainda mais amplificadas.

1. Histórico, densidade e condições de vida:

Fortaleza, capital do Estado do Ceará, é a 5ª maior capital do Brasil, concentra praticamente um terço da população do Estado (IBGE, 2010). Está entre as três principais capitais do Nordeste e é um dos municípios com maior densidade demográfica do Brasil com 8390 hab/Km2.

Sede do maior banco regional da América Latina (Banco Regional do Nordeste), Fortaleza é um importante polo de atividades de serviços, incluindo o turismo. O IDH da capital é classificado como alto (0,754), mas Fortaleza já foi indicada pela ONU (G1, 2012a) como a 2ª cidade mais desigual da América Latina (índice de gini de 0,60) em 2012.

Situados no litoral da capital, os bairros de Barra do Ceará e Meireles possuíam 72.000 e 32.000 habitantes, respectivamente, segundo o censo de 2010 (IBGE, 2010). Ambos os bairros tiveram os primeiros óbitos registrados na última semana de março. A situação de Meireles piorou em meados de abril, mas, desde então, não se registram praticamente mais óbitos no bairro.

Atualmente, os óbitos se concentraram na região próxima à Barra do Ceará. Em relação à distribuição desigual de riqueza, a tabela abaixo resume as condições de vida nos bairros. Com IDH elevado e baixa densidade, Meireles foi atingido no início da pandemia enquanto a Barra do Ceará, com IDH baixo e alta densidade, concentra mortes em Maio.

2. Covid-19 e morbidade: Duas curvas inseparáveis

No dia 15 de Março, foram registrados os três primeiros casos do novo coronavírus em Fortaleza. Em uma dinâmica parecida com a registrada em diversas capitais do país, esses primeiros casos se concentraram em regiões mais ricas, como no bairro de Meireles e a região da Praia do Futuro, indicando que o vírus teria começado a circular nessas áreas mais abastadas vindo do exterior.

Na semana do dia 22 de Maio, a cidade registrava mais de 18 mil casos e 1600 mortes, sendo o epicentro da crise sanitária no Estado, segundo o boletim da Secretaria Municipal de Saúde (Fortaleza, 2020). A partir de meados de abril e principalmente no mês de Maio, no entanto, registrou-se uma tendência de avanço da pandemia nas periferias da cidade (Diário, 2020a) - sinalizando a existência de duas curvas de contaminação da doença. No bairro de Meireles, de 1º de Abril até 25 de Maio, tivemos mais casos (649), mas menos mortes (27) que em Barra do Ceará (400 casos e 58 mortes). Uma mortalidade quase três vezes menor no bairro mais rico (4,2% contra 14,5%).

Em 14/05, dos 10 bairros com maiores índices de mortes todos estavam na periferia da cidade. Isso, pois a transmissão de vírus pode ser facilitada nessas densas populações, caracterizadas por contato inter-individual frequente, moradias lotadas, sistemas inadequados de saneamento, educação deficiente e estado nutricional deficiente. A situação de infraestrutura social deficitária se materializou em filas de pacientes infectados e sem leitos, em áreas vulneráveis e densas. Assim, seja pela impossibilidade de isolamento em moradias precárias, seja pela falta de acesso à saúde pública, o número de casos confirmados e de mortes rapidamente migrou da zona rica às mais vulneráveis.

Foto: Diário do Nordeste
Foto: Diário do Nordeste
Coronavírus na Barra do Ceará, com rotina social mantida

3. Isolamento social: Duas quarentenas entre Barra e Meireles

Além da maior transmissão nas regiões mais vulneráveis, um problema central para o controle do contágio nesses territórios é a inviabilidade do lockdown nas periferias sem que haja uma políticas sanitárias e de sustentação de renda permanente que diminua a vulnerabilidade da população. No caso de Fortaleza, a partir do dia 8 de Maio foi imposta uma política de lockdown (tranca-rua) na cidade, com sanções e autuações no caso de indivíduos que descumpram a ordem de não sair de casa para atividades não-essenciais, sendo este decreto ampliado até o final do mês de Maio pelo menos. No que diz respeito à efetividade dessas políticas, se nas áreas centrais da cidade como no bairro de Meireles o lockdown foi relativamente eficaz (de 70 a 80% de isolamento), a situação das periferias é mais complicada (O Povo, 2020) .

Nas regiões periféricas da cidade, como a Barra do Ceará, o lockdown parece ser uma medida distante. De fato, na Barra a taxa de isolamento em 14/05 era de 50% e na Vila Pery de 20% - muito longe da meta de 70% recomendada pela Prefeitura. Na Barra, moradores relatam manutenção da rotina social e falta de fiscalização, resultados da impossibilidade de se executar isolamento em condições de moradia precária (Diário, 2020c). Além disso, aglomerações foram registradas em decorrência das filas para requisição do auxílio emergencial em agências da Caixa - sem o requisito de máscaras. Há grandes desafios para atingir o isolamento social necessário na periferia de Fortaleza, um deles é que boa parte dos seus moradores depende de trabalhos informais inviáveis de forma remota.

Somando-se a esse fator temos a dificuldade de acesso e recebimento da renda básica emergencial, quadro que dificulta a sobrevivência econômica dessas pessoas na situação de quarentena. De fato, muitos moradores trabalham informalmente em estabelecimentos de regiões mais ricas da cidade como Meireles e o lockdown tem como consequência o aumento da vulnerabilidade (DIÁRIO, 2020c). Assim, a epidemia não estará controlada enquanto não houver um esforço de solidariedade, através de ações coordenadas de política pública, direcionadas para aqueles em situação de maior vulnerabilidade.

Foto: Diário do Nordeste
Foto: Diário do Nordeste
Coronavírus em Meireles, com isolamento e baixa densidade

4. Políticas públicas para preservar vidas:

Dadas as condições socioeconômicas e sanitárias particulares associadas à transmissão do Covid-19 nas favelas brasileiras, o uso dos modelos preditivos desenvolvidos para essas realidades é de suma importância para o desenvolvimento de políticas públicas que possibilitem salvar vidas e proteger os mais vulneráveis. Nessa linha, o nosso simulador de dispersão do coronavírus (MD Corona) proposto por Guedes Pinto; Magalhães; Santos (2020) simula políticas de isolamento de forma a entender a disseminação do COVID-19, considerando as características socioeconômicas e a densidade populacional.

As curvas abaixo resumem simulações e resultados para Meireles e Barra do Ceará:

Cenário 1 - Simulação sem intervenção de isolamento social.

Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 1 - Meireles
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 1 - Barra do Ceará

Nesse cenário ambos os bairros atingem rapidamente a imunidade de rebanho com ~35% da população de Meireles e ~52% da Barra do Ceará contaminada no pico da curva após aproximadamente 50 dias. Esse número é extremamente elevado e levaria ao caos no sistema de saúde em ambos os territórios. A diferença se reflete principalmente na porcentagem de mortos: enquanto a Barra do Ceará teria ~2% da população, Meireles teria metade, ~1% da população morta.

Cenário 2 - Simulação com isolamento de 70% da população

Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 2 - Meireles
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 2 - Barra do Ceará

No cenário em que 70% da população estivesse de fato confinada, como vem sugerindo o Estado do Ceará, os resultados ainda são bastante diversos para os dois territórios. No rico bairro de Meireles, o ápice da curva pandêmica atinge aproximadamente 6% da população ao mesmo tempo, na Barra do Ceará esse número sobe para ~16%. Enquanto o primeiro está no limite da capacidade do sistema de saúde o segundo é quase 3 vezes superior. Essa diferença se torna ainda mais problemática se se considera a porcentagem de mortos: ~1,5% na Barra do Ceará (1080 pessoas) contra ~ 0.5% (160 pessoas) em Meireles, níveis extremamentes altos em ambos os casos.

Cenário 3 - Isolamento total (Lockdown - 80% da população)

Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 3 - Meireles
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 3 - Barra do Ceará

Com 80% de confinamento Meireles consegue resolver e estancar a pandemia apresentando apenas pequenas flutuações. Ao passo que na Barra do Ceará ainda podemos observamos uma média de ~8% da população contaminada, a mesma faixa observada para Meireles no cenário anterior (com 70% de confinamento). A taxa de mortalidade é ainda muito alta para Barra do Ceará, na faixa de 0,8% (576 pessoas), enquanto em Meireles esse número é ao menos três vezes menor, 0.25% (80 pessoas).

Cenário 4 - Isolamento total (Lockdown - 86% da população)

Para atingir o mesmo nível de supressão ao vírus que Meireles, a Barra do Ceará precisa de um confinamento de 86%.

Gráfico simulado por Ação Covid-19
Gráfico simulado por Ação Covid-19
Cenário 4 - Barra do Ceará

Os resultados deste estudo corroboram a forte vulnerabilidade das comunidades diante da crise sanitária, ressaltando a importância de medidas de isolamento social adaptadas à realidade dessas comunidades para poupar vidas (no link "como agir", damos exemplos do que pode ser feito pelos poderes públicos locais, estaduais e federais em conjunto com as lideranças dos bairros mais vulneráveis para mitigar as terríveis consequências da pandemia).

Um cenário de isolamento total (86% de confinamento) teria como consequência um menor número de contaminados. Ainda assim, nossas simulações apontam que em 7 meses Meireles teria um total de 4% de pessoas infectadas pelo novo coronavírus, ao mesmo tempo em que 20% das pessoas teriam contato com o vírus na comunidade Barra do Ceará. Esse número, ainda que seja maior para o caso da Barra, é suficiente para não haver sobrecarga no sistema de saúde da região.

Por outro lado, no cenário 3, com o isolamento social sendo praticado por 80%, a discrepância entre Meireles e a Barra é alarmante. Enquanto que no bairro mais rico o número de infectados total atingiria 9% da população em 7 meses, no bairro mais pobre, em 7 meses, 42% da população seria infectada, resultando um total de aproximadamente 0.8% de mortos (576 pessoas segundo o censo de 2010).

Sem nenhuma intervenção de isolamento social, ambos atingem um elevado contingente de mortos que é mais duro para a comunidade. Assim, aponta-se para a importância da coordenação entre os diversos níveis de autoridade pública, movimentos sociais e lideranças comunitárias no enfrentamento da crise. É necessário pensar em políticas de isolamento social adaptadas à realidade de cada área com manutenção da renda e melhora nas condições sanitárias urgentes, de forma a salvar vidas em um esforço coletivo de solidariedade.

Referências:

  • Diário do Nordeste. Em dia de recorde de casos no Ceará, periferia tem maior letalidade. 16 de abril de 2020a. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • Diário do Nordeste. Primeiro dia de lockdown em Fortaleza tem bloqueios em vias, mas com aglomerações em alguns pontos. 8 de maio de 2020b. Disponível aqui Acessado em 25 de maio de 2020.
  • Diário do Nordeste. Dez Bairros com mais mortes por COVID-19 estão na periferia de Fortaleza. 15 de maio de 2020c. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • G1. Fortaleza é uma das cidades mais desiguais da América Latina,diz ONU. 22 de agosto de 2012a. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • G1. Três primeiros casos de coronavírus no Ceará são confirmados pela Secretaria da Saúde. 15 de março de 2020. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020
  • G1. Governador do Ceará prorroga decreto de isolamento; Fortaleza segue em lockdown até fim de maio. 20 de maio de 2020. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • G1. Descumprimento ao decreto de isolamento leva 1.479 abordagens policiais durante lockdown em Fortaleza. 18 de maio de 2020. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Censo 2010. 2010. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • O Povo. Três primeiros casos de coronavírus são confirmados no Ceará. 15 de março de 2020. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • O Povo. Com 20%, Vila Pery registra menor taxa de isolamento social de Fortaleza; Capital tem média de 55%. 14 de maio de 2020. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • Fortaleza, Prefeitura de. Boletins Epidemiológicos. 22 de maio de 2020. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.
  • Kondzilla. "Ainda lutamos pelo direito à água", #COVID-19NASFAVELASDORIO, saiba como ajudar. 24 de março de 2020. Disponível aqui. Acessado em 25 de maio de 2020.